
É claro que, quando se utiliza o princípio da autenticidade para nortear as ações de conservação de bens culturais adentra-se em um território de especulações teórico-filosóficas. Neste sentido, há casos emblemáticos e didáticos que estão sempre presentes nos estudos acadêmicos, como o do refazimento do barco de Jasão na estória mitológica do herói grego e o da cabeça do faraó Ramsés, no Templo de mesmo nome, em Abu-Simbel, no Egito. Ambos os casos pode-se dialeticamente conciliar a dicotomia entre os valores de autenticidade concebidos entre o Oriente e o Ocidente.
No caso, o CECI compreende por intervenções inteligentes aquelas que têm a capacidade de se adaptar ao meio material (e imaterial) do objeto de modo garantir um equilíbrio progressivo entre o “novo” e o antigo [i]. Ambos os termos levam ao entendimento de que, uma intervenção é sustentável quando garante ao objeto uma sobrevida maior, isto é, um prolongamento da expectativa de sua trajetória. Uma intervenção é inteligente quando garante a resiliência do material no longo prazo e sua capacidade de carga (uso) [ii]. Como testemunho expressivo dessas assertivas, apresenta-se a técnica antiga das alvenarias de tijolos ou de pedras argamassadas com argila, conhecidas como argamassa bastarda. Segundo ARAÚJO, ao se caracterizar, a partir de testes e análises laboratoriais as argamassas bastardas ou se estabelecer comparações com as argamassas de cal e areia, chega-se às seguintes conclusões: 1) são mais porosas; 2) são muito mais frágeis aos esforços de compressão. Entretanto, a maior porosidade do ponto de vista da conservação e da restauração dos edifícios antigos é uma virtude, porque deixa respirar os antigos muros - é justamente a alta porosidade. Pode-se concluir que uma das características mais surpreendentes dessa alvenaria é a sua pouca rigidez e, conseqüentemente, a sua capacidade de absorver acomodações de toda sorte [iii]. Foi o caso da aplicação da mesma técnica na recuperação de partes das grossas alvenarias das colunas de tijolos de barro maciços, secos ao sol (adobe), assentes com argamassa de argila e caiados no antigo Engenho Poço Comprido, em Vicência, Pernambuco (Brasil), datado do século XVII.
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Img. 1 – Moita do Engenho Poço Comprido. Fonte: CECI/nov2008 |
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Img. 2 – Aspecto das colunas em alvenaria de tijolos da moita do Engenho Poço Comprido. Fonte: CECI/nov2008 | Img. 3 – Detalhe da alvenaria de tijolos da moita do Engenho Poço Comprido. Fonte: CECI/nov2008 |
Algumas outras técnicas e intervenções podem ser observadas no âmbito do Brasil como as realizadas nas edificações em terra, numas das técnicas denominada taipa-de-pilão, ou em peças estruturais de madeiras de assoalhos, forros e telhados, ou em cantarias de pedras calcárias e areníticas. Na verdade, seja como for e onde for o princípio dessas intervenções baseia-se na utilização dos mesmos materiais do componente construtivo objeto das ações preventivas ou corretivas. Isso porque a interação de materiais de mesmas propriedades acarreta mínimas reações físico-químicas e de tensões tangencias.
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Img. 4 – Processo de confecção de taipa-de-pilão para procedimentos de enxertos e próteses. Fonte: Curso Gestão de Restauro/CECI/nov2009 | Img. 5 – Refazimento de taipa-de-pilão e de alvenarias de tijolos adobe no restauro da Matriz de Pirenópolis, Goiás. Fonte: Adriano Assunção/Biapo/2007 |
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Img. 6 – Detalhe de sambladura tipo mão-de-amigo para prótese em peças estruturais de madeira, utilizada nas tesouras do telhado da Basílica da Penha. Dispensa o uso de metais para compleição de rigidez da peça. Fonte: CECI/nov2008 | Img. 7 – Consolidação das alvenarias de adobe da capela mor da Igreja de N. Sra. De Belém (Cachoeira/Bahia) feita em concreto armado, substituindo-se os esteios de madeira que poderiam ter sido encachorrados com samblagens mão-de-amigo. Fonte: CECI / nov2006. |
O uso de materiais e técnicas tradicionais da construção nas intervenções em componentes construtivos de edificações de valor cultural no Brasil ainda é muito tímido. Até os meados da primeira década deste século, os principais divulgadores desse procedimento eram, no Sul, Isabel Kanan, arquiteta da 11ª SR/IPHAN (Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), e os professores do curso Gestão de Restauro do CECI no Nordeste. Contrariamente a essa postulação, o que ainda se verifica em todo o país é o mais amplo emprego de materiais e técnicas antagônicos à história construtiva do edifício. Com a autoridade de quem verifica anualmente, nas principais cidades históricas do Brasil, os procedimentos de execução de obras e serviços em edificações tombadas pelos poderes públicos federais, estaduais e municipais, o CECI destaca intervenções com materiais e técnicas que acarretam o que se denomina ruína precoce.
O termo "ruína precoce" foi utilizado inicialmente pelo arquiteto e urbanista Dr. Lúcio Costa, em 1947, num parecer sobre o tombamento da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha. Referia-se ele a “certos defeitos de construção e abandono a que foi relegado esse edifício pelas autoridades municipais e eclesiásticas...”.[iv] Embora desconhecendo a constatação do mestre face ao estado de arruinamento precoce daquela edificação moderna, com tão pouco tempo de construção, este autor usou esse termo em 1978 para designar a rápida falência de materiais empregados em algumas obras de restauração nas Minas Gerais e outros estados do Sudeste. É incrível que decorridos tantos anos, verifica-se que as recentes intervenções de conservação e restauro do patrimônio construído situações de colapso antecipado e acelerado das características físico-químicas de certos materiais quer pela impropriedade do seu emprego quer pela qualidade técnica do produto [v].
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Img. 8 – Arruinamento precoce da fachada de um sobrado, localizado à Rua do Bom Jesus, na cidade do Recife, dois anos após um grande empreendimento de recuperação geral das edificações naquele logradouro histórico. Fonte: CECI/jul2004 | Img. 9 – Rebocos de um muro de uma casa, à Rua de São Bento, em Olinda. Com um mês de execução do restauro já apresentava graves infestações de fungos e proliferação de algas, antes mesmo de ser pintado. Fonte: CECI/nov2007 |
Jorge Eduardo Lucena Tinoco, arquiteto, professor do Curso de Gestão de Restauro e responsável técnico do CECI.
[i] Analogia tomada do estudo da inteligência de pedagogo Piaget. Veja-se “Psicologia da Inteligência”, PIAGET, Jean. Editora Fundo de Cultura, 2ª edição, Rio de Janeiro, 1961.
[ii] MOITA, José Machado Neto, «O conceito multidisciplinar de Resiliência» [consulta: 20.07.2011] http://www.fapepi.pi.gov.br /novafapepi/ ciencia/documentos/Resili%EAnciaMoita.PDF (acesso jul/2011).
[iii] ARAÚJO, Roberto A. Dantas de. «As Argamassas no Período Colonial». In Aula 20 do Curso Gestão de Restauro, Técnicas Construtivas Tradicionais no Brasil – TCTB, 7ª edição, Olinda, 2007.
[iv] PESSÔA, José Simões de Belmont. In “Lucio Costa: Documentos de Trabalho”, Iphan, Rio de Janeiro; 1ª edição, 1999
[v] TINOCO, Jorge E. L. «Ruína Precoce». In Conservação Integrada do Patrimônio Construído, [consulta: 12.12.2011]. http://conservacaointegrada.blogspot.com/